[Letra de "A Noite"]
[Verso 1]
Em tudo o que já fomos
Está o que seremos
No fundo desta noite
Tocam-se os extremos
E se soubermos ver nos sonhos o processo
Os passos para trás não são um retrocesso
A noite é um sinal de tudo quanto fomos
Dos medos, dos mistérios
Das fadas e dos gnomos
Da ignorância pura
E da ciência irmã
Em que sendo passado
Já somos amanhã
A noite é o espaço vago
O tempo sem história
Em que as perguntas nascem dentro da memória
Em tudo o que já fomes
Está o que seremos
Mas cabe perguntar
"Foi isto que quisemos?"
[Verso 2]
Em tudo o que já fomos
Está o que deixámos
No vеntre das marés
Nos portos que tocámos
O rumo desvеndado
O preço da bagagem
É tudo o quanto resta
Para seguir viagem
[Verso 3]
A noite é parideira da contradição
Que existe em cada sim que nos parece não
Olhando para nós
Os grandes dissidentes, no meio da luta
Entre lemes e correntes
Será esta viagem feita pelo vento
Será feita por nós
Amor e pensamento
O sonho é sempre sonho se nos enganarmos
Mas cabe perguntar
Como é que aqui chegámos
[Verso 4]
Vem longe ainda a praia do futuro
É a luta sem glória
É ser vencido por uma oculta súbita fraqueza
Um desalento, uma intima tristeza
Que à morte leva sem se ter vivido
A estrada da vida anda alastrada
De folhas secas e mirradas flores
Eu não vejo que os céus sejam maiores
Mas a alma é que eu vejo mais minguada
[Verso 5]
Em tudo o que já fomos
Estão os nossos mortos
E os vivos que ficaram
Entram nos seus corpos
Na noite do amor, na noite do sinal
Naufrágio de fantasmas
Na via batismal
A noite é um impreciso e escuro purgatório
Que alinha as nossas almas no seu dormitório
A culpa dos heróis é serem sempre poucos
A caso somos mais, ou tão somente loucos
Temos que descasar a culpa e o prazer
Naquilo que fizemos ou deixámos de fazer
Para reconstruir os corações cativos
Mas cabe perguntar
A caso, estamos vivos
Irmãos, irmãos
Amemo-nos agora
É de noite que os tristes se procuram
E paz e união entre si juram
Irmãos, irmãos
Amemo-nos agora
Vós que ledes na noite
Ó vós, profetas que sois os loucos
Porque andais na frente
Que sabeis o segredo
Da fremente palavra que dá fé
Ó vós, poetas
Em tudo o que já fomos
Há um sonho atípico
Conversa universal de cada um
São sombras e brinquedos , tudo misturado
E o vago sentimento de nascer culpado
Será um sonho absurdo este olhar para dentro
E o nosso destino só servir de exemplo
Andamos a fugir à frente desta vida
Na escada perguntar
"Existe uma saída?"
[Verso 6]
Sinto que é preciso caminhar
Avante !
Andar, passar por cima dos [?]
Como quem numa mina vai de bruços
Olhar apenas uma luz distante
Heis então ver ao descerrar do escuro
Bem como cumprimento de um agouro
Abrir-se como grandes portas de ouro
As imensas auroras do futuro
[Voz feminina]
Mama, meu menino
Leite é como rio
Que nunca para de correr
O leite branco é o remédio santo
Com que tu vais crescer
Entre as duas margens
Quentes e fecundas
Mama meu menino
Sem parar
[frio?] sem fundo
A cura do mundo
Que corre devagar
Mama o leite, meu passarinho
Mata a sede sem temor
Este rio é o teu caminho
O cordão do meu amor
Mama, meu menino
Mais um poucochinho
Que eu paro o tempo só para ti
Seiva da vida com que foi enchido
Quando te concebi
Um pequeno esforço
Mete te ao caminho
Duas colinas mais além
Asas de estrume
Para te [?]
Oh meu supremo bem
Mama o leite meu passarinho
Mata a sede sem temor
Este rio é o teu caminho
O cordão do meu amor
A Noite was written by José Mário Branco & Antero de Quental.