Letra:
Um belo dia, minha mãe entrou em casa dizendo que minha vó tinha arrumado um namorado novo. Seu Roberto. Primeiro achei que era mentira, que era mais uma história que minha mãe tinham inventado pra me provocar. Depois, olhando pra minha vó, vi que ela realmente parecia apaixonada.
Em seus olhos via-se aquele tipo de paixão que faz seu coração bater tão rápido quanto da primeira vez que você apertou uma campainha e saiu correndo, ou melhor, via-se aquele tipo de paixão que você sabe que não vai te salvar do apocalipse, mas que vai te garantir um novo gênesis.
Minha vó não só parecia apaixonada, mas também aparentava viver uma típica confusão adolescente.
Primeiro começou a trocar o nome das pessoas, me chamava tanto pelo nome do meu primo que eu comecei a responder cada vez que alguém gritasse Diego. Quando eu a corrigia, ela suspirava e respondia com um sorriso, igual esses que a gente vê em maternidades. Não o que tá no rosto dos pais, mas aquele que fica na boca dos recém nascidos.
Depois, começou a trocar as coisas de lugar. Sua casa parecia um jogo dos 7 erros.
Cada armário que você abria, te dava a sensação de estar vendo árvores de natal em julho.
Hoje, por exemplo, é a 8 vez que eu tiro seu shampoo de dentro da geladeira.
Dizem que devemos aprender com nossos erros mas como tirar uma lição de algo que você não se lembra de ter feito?
Não é paixão se não te desconcerta, se não te tira do eixo, se não te perder o rumo.
Quando os médicos deram o diagnóstico, percebemos que o namorado da vovó alimentava nela uma paixão tão intensa que fazia com que ela esquecesse do mundo. Literalmente.
Seu nome? Roberto, Roberto Alzheimer.
Quando minha mãe disse que minha vó estava “abraçando o alemão”, percebi em seus olhos os portões de Auxvitz. Só quem viveu atrás deles sabe o quanto é difícil se lembrar da própria história!
Refrão:
E quando você vem
Nem sabe o bem que me trás
Me deixa em paz
E quando você vai
A minha mente me trai
Me tira o que é meu e eu já não consigo lembrar
De quem eu sou e o que me deixa em paz
Dizem que as primeiras sensações são parecidas com as de acordar na casa de alguém com uma ressaca. Leva um tempo até você perceber que não é sua casa, mas, o que fazer quando você não reconhece mais o papel de parede do seu próprio corpo?
Quando os neurônios da minha vó começaram a brincar de telefone sem fio, seus verbos de ligação começaram a cair na caixa postal e se lembrar da senha do correio de voz das suas recordações era quase como resolver palavras cruzadas só usando consoantes.
Nessa hora, se percebe que Alzheimer é quando o jogo da memória se transforma em quebra cabeça, as palavras vão brincar de esconde esconde e nenhuma lembrança volta pra salvar o mundo.
É quando os tempos verbais deixam de existir com tudo que aconteceu neles e a frase: somos o que comemos explica as marcas de dentes e as fotografias mastigadas que encontramos embaixo do seu travesseiro.
Dizem que os olhos são as janelas da alma. Se você a olhar por algum tempo vai conseguir perceber fantasmas te encarando através das vidraças de seu olhar. São as memórias dela tentando te dar oi. Quando minha vó passou a assombrar o próprio corpo entendi que as pessoas adoram ouvir historias de fantasmas mas ninguém quer dividir a casa com um poltergeist.
Por falar em fantasmas, cada vez que eu ia conversar com ela, ela gaguejava tanto as silabas e vogais que eu tinha a certeza de que cada bate papo, na verdade, era a brincadeira do compasso. A única diferença entre a língua da minha vó e um tabuleiro Ouija é que a tábua ainda tem o abecedário inteiro.
Alzheimer é quando você entende que a linguagem é um veículo de comunicação e que sua vó tem se tornando um estacionamento vazio, é quando o espaço antes do parágrafo em sua boca se torna do tamanho da pagina inteira e a mudez vira sua segunda pele.
Antes, achava que ela não falava mais com a gente pq aprendeu que quando criança que não deveria conversar com estranhos, hoje, prefiro acreditar que converso com Deus através de minha vó.
Pelo menos acho o silencio deles parecido!
Refrão:
E quando você vem
Nem sabe o bem que me trás
Me deixa em paz
E quando você vai
A minha mente me trai
Me tira o que é meu e eu já não consigo lembrar
De quem eu sou e o que me deixa em paz
Quando eu era criança, vovó me disse que quem tem memória boa tem memória de elefante. Alzheimer é onde morrem os elefantes e nos ensinou duas coisas importantes sobre minha vó: a primeira é que ela era tão forte quanto um baobá. E a segunda é que baobás, apesar de serem fortes, são ocos por dentro.
Minha vó é uma pirâmide se tornando pó diante dos meus olhos e a sensação que eu tenho ao ve-la é a mesma de ver um sarcófago recém descoberto: tudo parece exatamente deixado no lugar esperando a volta do antigo dono.
Parece que sua vida foi escrita no espelho de um banheiro cheio de vapor. Alzheimer é uma janela aberta. Hoje ela reconhece o próprio reflexo, mas, não consegue ler a historia que foi escrita por cima dele e, ela que um dia foi manicure, hj, ao invés de usar as unhas pra desenterrar o passado, usa pra cavar a própria cova.
Mas ela não sabe disso. O calendário só existe pra quem cuida.
Pra ela, como pode ser o fim da vida se ela não se lembra que viveu?
Sei que de vez em quando, sua memória imita um brechó: tudo ali lhe parece familiar, mas nada parece realmente lhe pertencer.
Nesses momentos eu não preciso passar laquê ao invés de perfume só pra ela sentir em mim, o cheiro de algo que ela conheça ou então me perguntar como posso ter certeza de que ela ainda me ama se talvez nem se lembra mais de quem eu sou.
Se ela não se lembra que tudo isso começou quando, um belo dia, minha mãe entrou em casa e disse que ela tinha arrumado um novo namorado. Seu Roberto. Não sei se ele a ama, mas sei que ele vai estar com ela até seu ultimo dia de vida.
Quando ela fala, ainda troca meu nome, não a corrijo mais. Diego. Eu apenas sorrio, feliz, afinal, ela ainda se lembra de alguém!
Refrão:
E quando você vem
Nem sabe o bem que me trás
Me deixa em paz
E quando você vai
A minha mente me trai
Me tira o que é meu e eu já não consigo lembrar
De quem eu sou e o que me deixa em paz
Onde Morrem os Elefantes was written by Marcello Gugu.
Onde Morrem os Elefantes was produced by Maurício Gargel & DJ Duh.
Marcello Gugu released Onde Morrem os Elefantes on Thu Mar 28 2019.