Todos nós sonhamos com a possibilidade, por sinal impossível, de transformar alguns fatos já vividos em ou¬tros. De outro modo, imaginamos desviver o vivido. Essa mágica não se realiza. Cada um lembra, amargamente, que podia ter estudado mais para aquele exame, não de¬via ter tratado tão mal aquela namorada encantadora, há muito devia ter mandado para o inferno o “amigo da onça” explorador, ter tido mais cuidado ao dirigir, evitan¬do o acidente provocador das dores do joelho. Pensamos: “Se tivesse agido de outro modo, estaria, possivelmente, vivendo mais feliz do que estou”. Talvez sim, talvez não. Quantos e quantos aborrecimentos podiam ter sido evi¬tados. Em resumo: muitas decisões tomadas ontem com muita fé, hoje, em hipótese alguma seriam realizadas.
O povo fala: “ninguém é perfeito”, portanto, todos nós, sem exceção, demos nossos tropeços durante nossa passagem pela vida terrena. Segundo as estatísticas nesse assunto, quase todas ou todas as pessoas sentem-se ter¬rivelmente arrependidas de terem abandonado os estudos muito cedo, queixam-se de que ninguém nada fez para dissuadi-los disso. Outros lamentam um casamento preco¬ce, que estragou todos os outros planos.
Há, ainda, os que se arrependeram de ter mantido uma amizade por muitos anos, quando o melhor teria sido mandar “para o inferno” o “amigo/inimigo” de longa data, e outros ainda, por fim, amaldiçoam a hora fatídica do trá¬gico encontro que resultou numa gravidez e no nascimento de um filho nascido num momento terrível, jogando por terra as belas fantasias da juventude.
A psicologia costuma chamar esse arrependimento de “pensamento contrafactual”, isto é, nosso desejo de mudar os fatos que lamentavelmente aconteceram no passado e não podem ser modificados.
Como o mundo caminha independentemente do que desejamos, um pequeno, simples e tolo fato não-pensado, não-desejado e nem necessário pode ocorrer. Tragicamen¬te, esse fato que não precisava existir pode mudar para sempre nossas vidas. Um “escorregão numa casca de ba¬nana” pode dar origem a um novo e árduo caminho, sem que nada mais possa ser feito, destruindo para sempre a trajetória delineada, carregada de emoções positivas que habitavam o organismo num tempo longínquo que passou. Quanta saudade!
Pensando nos meus escorregões, nas minhas “burra¬das” malucas pela vida afora, lembrei-me do encontro oca¬sional que tive com o Sócrates. Esse meu amigo de infância tinha uma vida traçada para ser boa. Era disposto, alegre, bonito e rico. Mas “estou lamentando antes da hora”. Sócra¬tes conheceu a filha do aposentado da esquina, em virtu¬de de pequenas coincidências, a princípio sem importância. Pouco a pouco, esse conhecimento, que não precisava ter ocorrido o levou a um caminho, é…bem! Vou lhes contar:
Eu caminhava a mando do cardiologista – fazia mi¬nhas caminhadas para melhorar a pressão e observar a multidão – quando encontrei Sócrates. Achei-o envelheci¬do. Sempre achamos o outro mais acabado do que nós.
Penso que essa avaliação ocorre porque vemos todos os dias nosso rosto e corpo no espelho e não vemos o do nosso amigo sumido.
Fomos colegas no colégio do bairro e do futebol da várzea. Nem eu, nem ele, fomos craques, nem de futebol, nem dos estudos. Estudávamos para passar de ano e jogá-vamos para nos divertir. Entretanto, não éramos os piores da sala nem do time. Um dia, um dia como qualquer outro, sem nada de especial, nem chovia, nem ventava, o azul do céu de abril começava a escurecer, o Sol se punha, tran¬quilo. Sócrates ainda era jovem, muito jovem, como era o narrador dessa tragicomédia.
Estava esquecendo: ele era um dos poucos do grupo que a família tinha algum dinheiro. Falava-se, entre nós, que seu pai era grande fazendeiro no norte de Minas. Nas nossas conversas não se comentava a vida e os segredos familiares de e para ninguém. Essa regra – não havia proi¬bições explícitas – era acatada e respeitada por todos, não podia ser burlada.
Voltando ao Sócrates: ele, quando ainda era um gina¬siano – para quem não sabe, “ginasiano” era quem cursava os quatro últimos anos do atual primeiro grau – foi fisgado pela filha do aposentado. Lucélia, uma bela morena, ou mulata, isso não importa, era de “fechar o comércio”. Até aquela data, ela era inacessível aos jovens imberbes e de¬sajeitados, mas nem por isso deixava de ser desejada por todos os jovens que transitavam em torno de sua casa.
Dentro do nosso maniqueísta e acanhado campo per¬ceptual de julgamento da conduta feminina, existiam, ra¬dicalmente opostos, dois tipos de mulheres: de um lado, as santas ou virgens-santas que serviam para se casar, de outro, as desinibidas e livres demais que podiam ter algu¬mas outras serventias.
Até então, não havia meio-termo. Mas apareceu Lu¬célia. Nenhum de nós pensava em aproximar-se dela para namorá-la, não porque a rejeitássemos, mas sim devido à nossa incapacidade física e financeira, ou pior do que isso, em virtude de nossa inabilidade, da falta de coragem, pois não conhecíamos as estratégias e as táticas necessárias para mantermos uma conversa e um relacionamento ade¬quado com uma mulher daquele “pedigree”, capaz de fa¬zer todos os homens virarem seus rostos em sua direção, quando passava pela rua. A presença de Lucélia derrubou nossa regra simples para julgar as mulheres em dois gru¬pos opostos. Ela era um dos únicos e raros artigos que conhecíamos fora-de-série, pois não era, segundo nossa classificação, nem para casar, nem para um programa com pessoas como as do nosso grupo. Amedrontados, muito antes de darmos o primeiro passo em sua direção, já ante¬víamos o fracasso caso ousássemos conquistá-la. O nosso treino era pouquíssimo, a nossa única e, por sinal, péssi¬ma experiência, era muito pequena: “mulheres de rua”, mulheres de “terceira classe”, segundo nossa classificação sócio-religiosa da época, isto é, prostitutas, semiprostitu¬tas ou candidatas a tal.
Enxergávamos Lucélia através desses óculos embaça¬dos e de lentes não-flexíveis, de maneira confusa: éramos superatraídos por ela e também tínhamos pavor de nos apro-ximarmos. Assim, ao mesmo tempo, sonhávamos em estar juntos e afastados dela. Tentar ou não tentar. Mas pior que tudo: Lucélia era inacessível para nossas posses. Tínhamos o delírio em nossas mentes, mas a realidade era outra.
Num fim de tarde, ficamos surpresos ou espantados, não sei bem, quando vimos Sócrates de mãos dadas com Lucélia, passando na nossa frente sorridente e orgulhoso da conquista. Não dava para entender. O seu comporta¬mento gerou em todos nós uma imensa inveja misturada com raiva. Pensei inicialmente que devia ser um encontro casual, sem consequências, milagrosamente dentro do pa¬drão existente no grupo. Mas fiquei intrigado, imaginando como foi que ele conseguira ganhar a tão distante Lucélia, uma conquista que ninguém do grupo tinha conseguido, nem imaginado.
Mas as pequenas diferenças foram, pouco a pouco, provocando as grandes diferenças na vida do Sócrates. Muito lentamente ele ia se transformando, à medida que sua paixão por Lucélia aumentava. Primeiramente Sócrates abandonou os encontros com os companheiros, mais tarde largou o futebol, depois, os estudos. A cada dia mais, sua vida girava exclusivamente em torno dela. Lucélia também ficou diferente do que era. Deixou de ser a jovem livre e alegre de outros tempos, a que saía com os “bacanas” de terno e gravata, os que a buscavam em seus carros, de fato carros simples. Tornou-se uma donzela séria, reca¬tada. Ao abandonar os “grã-finos”, somente saía com Só¬crates. Nós, de boca aberta, olhávamos e suspirávamos, seduzidos e raivosos, ao ver o casal passar.
Após um curto período de dedicação exclusiva e de muita paixão, Sócrates deu mais um ligeiro escorregão, provavelmente não-desejado e não-programado. Um pe¬queno fato, sem os cuidados necessários, transformou, de vez, a vida do Sócrates e produziu uma diferença ainda maior. O fosso entre o antigo e o atual aumentou.
O inevitável ocorreu: Lucélia foi deflorada, nome dado na época a certas minúcias do sexo. Em outras palavras, Sócrates “fez mal” a Lucélia. Naquele tempo, diferente dos tempos modernos, o costume obrigava o suposto autor a ca¬sar-se com sua “vítima”. À “boca pequena” falava-se que ele havia caído no conto da gravidez indesejada, ou melhor, os componentes do grupo tinham dúvida quanto ao autor real da gravidez. Talvez tivéssemos inventado isso de inveja.
A partir de mais esse pequeno fato, a boa vida de Sócrates foi decepada para sempre. Ele, que nunca havia trabalhado, passou a fazê-lo. Ele, que sempre tinha algum dinheirinho sobrando no bolso para comprar um doce ou ir ao cinema, teve que economizar. Os fatos negativos, como bolas de neve, se acumularam. Sem alternativas, diante de sérias dificuldades financeiras, Sócrates mudou-se da pensão razoável onde morava, para o fundo do bar¬raco existente na casa do sogro. Era lá onde funcionava um pequeno depósito de lenha. Era apenas um quartinho apertado para dormir. O banheiro situava-se fora do quar¬to e não havia cozinha, nem sala.
Sócrates passava parte do dia cuidando da esposa, que estava grávida, pois logo no início da gravidez Lucélia foi despedida do emprego de vendedora das Lojas Ca-nadenses. Dia sim, dia não, enquanto sua sogra cuidava dela, Sócrates vendia para vizinhos e pessoas amigas do¬ces fabricados por ele durante o dia e, à noite, trabalhava de porteiro da Associação Comercial.
Tentou voltar aos estudos, mas faltou dinheiro para as mensalidades e também tempo para frequentar a esco¬la e, por isso, abandonou o colégio para sempre.
Foi deixando de lado, progressivamente, outras me¬tas anteriormente planejadas como fazendo parte de seu futuro, frutos de sonhos de criança e dos incentivos do pai: ser advogado na área criminal, ser famoso, rico, par¬ticipar de júris com criminosos conhecidos, aparecer nas notícias dos jornais, ter diversas mulheres apaixonadas por ele.
O mundo imaginado e esperado foi sendo tomado por um mundo frio, monótono e sem sabor.
Sócrates foi sendo esmagado pelas pressões dos fa¬tos vindos de todos os lados: despesas com o leite, rou¬pas, médicos e remédios. Outros filhos foram nascendo, crescendo, dando mais e mais trabalho. Ora era um que tinha dor de barriga, ora outro tinha tosse, um terceiro dor de ouvidos. Uma boa parte do tempo eles choravam, de dia ou de noite, de fome ou de desconforto, algumas poucas vezes sorriam, pedindo colo ou companhia.
Nessa guerra inglória de partos continuados, abor¬tos espontâneos, gritarias infernais dos diabinhos, Lucélia foi se desfigurando. Inferiorizada, começava a não mais chamar a atenção dos homens nas poucas vezes que saía de casa. Sócrates, cabisbaixo, examinava-a. Recordando, comparava a Lucélia atual, gorda e encurvada, a que esta¬va viva à sua frente dando sopinha ao filho, com a jovem bela e alegre do retrato, colocado em cima da prateleira do guardalouça, a do dia do casamento. Deprimida, des¬confiada, irritada, gastava o que não podia com os filhos agitados e magros, com o alcoolismo do pai e a hiperten¬são da mãe.
Sócrates transformou-se num escravo das exigências do cotidiano, dedicado integralmente às soluções para os entraves constantes da vida familiar.
Não mais lhe sobrava tempo, nem mesmo capacida¬de, para pensar acerca de si mesmo, do que fazer em seu próprio benefício. O mundo imaginado durante sua juven¬tude ficava cada vez mais distante, com menor importância para ele. Uma vez ou outra, ocasionalmente, estimulado por uma notícia no jornal ou o encontro com um ex-com-panheiro, ele lembrava-se de algumas cenas do passado, longínquas, antigas e envelhecidas como sua cabeça atual. Lá, muito longe, o jovem alegre parecia tão feliz. Agora transformou-se noutro, um trabalhador em tempo integral para manter-se naquela miserável prisão iniciada na noite fatídica. Os sonhos viraram fumaça, dispersaram-se: Só¬crates foi levado para um outro mundo. O caminho, antes claro e perto, distanciou-se, estreitou-se, ficou embaçado.
Naquela tarde sombria, abandonei minha caminhada para escutar o desabafo de Sócrates. Morando sozinho, eu tinha enorme dificuldade para entender uma pessoa pre¬sa a uma família. Ao ouvi-lo com paciência, simpatia e até piedade, relatar, com uma voz embargada, seu drama melancólico, eu me lembrava dos tempos que não voltam mais, dos meus tropeços parecidos com o dele, dessa vida da qual sempre tive medo. Escutava suas amarguras, sua nova história de vida, uma vida para mim inútil e sem rumo. Imaginei que talvez, bem escondida – ele não me confessou isso – sua vontade era de nunca ter feito tudo aquilo.
Entretanto, como bom observador, pude notar, ao me despedir, uma certa satisfação e alegria no seu semblante. Imaginei que, apesar de tudo, das dificuldades com que vi-via, ele estava desejando chegar em casa, pois lá ele tinha proteção e segurança.
Daqui a pouco ele teria ao seu lado seus filhos e sua mulher para recebê-lo e com eles passaria a noite.
Nós nos despedimos friamente. Eu estava sem graça. Voltei para casa pensativo. Sabia que estava livre de tudo aquilo que ouvira. Entretanto, estava confuso: retornava para meu lar, um lugar onde não havia ninguém para me aborrecer, onde gozava de completa liberdade, entretan¬to na minha casa não havia ninguém, ninguém, ninguém mesmo. Somente eu para me receber, conversar e apoiar.